sexta-feira, 13 de agosto de 2010

15 anos sem Florestan: escola que leva o mestre militante no nome pede ajuda

Por Najla Passos
ANDES-SN -10/08/2010

Há exatos 15 anos, os sinos dobravam pelo mestre militante Florestan Fernandes, que morreu em São Paulo, sua cidade natal, vítima de um erro médico, aos 75 anos. A vasta obra de um dos maiores intelectuais brasileiros, entretanto, permanece viva e lúcida. Sua luta política em prol do socialismo e da escola pública e inclusiva, também. Aliás, floresce em várias frentes. Na academia, na sociologia crítica, nas ciências sociais, nas práticas militantes, no parlamento e, com especial êxito, na escola que o leva no nome, na concepção e na prática.

Situada em Guararema (SP), a 65 Km da capital, a Escola Nacional Florestan Fernandes - ENFF foi fundada em 2005 pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra – MST com o objetivo de contribuir para a emancipação da classe trabalhadora. Inaugurada quatro anos depois, oferece formação em diferentes níveis e áreas do conhecimento. São cursos livres, técnicos, de graduação e até de especialização e mestrado que, nesses cinco anos, já formaram 16 mil trabalhadores e quadros de diversos movimentos sociais do Brasil, da América Latina e da África.

Entretanto, apesar da militância aguerrida de mais de 500 professores que, voluntariamente, ministram as aulas, e do trabalho cooperativo dos seus próprios alunos para mantê-la, padece de recursos financeiros para continuar funcionando. Não é para menos. Desde a sua fundação, enfrenta a fúria de uma elite dominante que a acusa de imputar um forte “caráter ideológico” as suas aulas, como se o ensino oferecido pelas instituições oficiais fosse ideologicamente neutro.

“As elites, simplesmente, não suportam a ideia de que os trabalhadores possam assumir para si a tarefa de construir um sistema avançado, democrático, pluralista e não alienado de ensino“, afirma o jornalista e professor da PUC-SP, José Arbex Jr, membro do Conselho de Coordenação da Associação dos Amigos da ENFF, criada no ano passado para ajudar a suprir as carências financeiras da entidade.

O 1º tesoureiro do ANDES-SN, Hélvio Mariano, que participou de uma visita à ENFF em julho, ficou impressionado com a estrutura da escola. “O local é muito bonito e possui capacidade para atender, ao mesmo tempo, uma grande quantidade de trabalhadores do campo e da cidade. Outro ponto que chama a atenção é a biblioteca, com mais de 40 mil títulos. Muitas faculdades não têm essa quantidade de livros”, compara.

Para ele, os gastos com a escola, embora pareçam alto a primeira vista, valem a pena serem pagos. “Hoje a escola tem um custo alto de manutenção, chega perto de R$ 100 mil por mês, mas quando olhamos para os benefícios que ela pode trazer para dezena de milhares de jovens do país, acho que devemos lutar para manter de pé não só a ENFF, mas o sonho do próprio Florestan, de uma educação livre e emancipadora”.

A também professora Heloísa Fernandes, filha de Florestan, corrobora. “O espírito de Florestan Fernandes e de sua obra está na presente na escola a partir da forma como ela foi concebida. Conhecendo meu pai e seu pensamento como conheço, tenho certeza de que, se estivesse vivo, ela já teria se mudado para lá. Por isso, para mim, ir à ENFF é como ter um reencontro com ele. Meu pai mora lá. E, consequentemente, lá é minha casa também”, afirma Heloísa que, depois de mais de uma década afastada das salas de aula, redescobriu o prazer de ensinar na ENFF.

A filha e a ENFF

Heloísa se aposentou do Departamento de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – USP, justamente quando o pai morreu. “Eu andava muito assoberbada, cansada e descrente daquele modelo de universidade tecnocrática e produtivista que começava a se implantar no país. Para piorar, sofri demais com a perda de meu pai. Por isso, resolvi me afastar do ambiente acadêmico e me dedicar exclusivamente ao trabalho artesanal”, conta. Durante mais de uma década, teceu tapetes, enquanto processava o luto e a descrença nos rumos tomados pela educação no país. Isso mudou depois que, aos poucos, foi conhecendo o projeto educacional da ENFF.

Ela resistiu muito a comparecer à inauguração da escola. “Participei de muitas cerimônias em homenagem a meu pai que só faziam minha dor aumentar. Por isso, tinha decidido não aceitar mais convites. Só fui mesmo para acompanhar minha mãe. E na véspera, quando confirmei que iria, ganhei um presente lindo. Sonhei que meu pai chegava à minha casa em um caminhão cheio de trabalhadores. Descia e, com sua bengalinha típica, caminhava até mim e dizia: Heloísa, acorda porque hoje é dia de festa”.

Na inauguração da ENFF, Heloísa pediu a palavra, discursou, se emocionou e iniciou uma espécie de namoro com a escola. “Queria ter certeza de que não era dogmática”, frisa. Depois, passou a integrar os quadros da ENFF. “Resolvi assumir de vez essa história. Tive motivações pessoais, claro, mas essencialmente políticas. Para uma pessoa que acredita no socialismo, como eu, esta iniciativa é uma forma de se construir um novo país. Como dizia meu pai, a saída socialista é multiplicar as escolas”.

Na ENFF, ela atua principalmente ensinando o pensamento de Florestan e de Caio Prado Jr. Também procura discutir técnicas de pesquisa. “Tenho insistido muito para que os trabalhadores comecem a desenvolver suas próprias pesquisas ao invés de deixar que intelectuais nada comprometidos com eles continuem a fazer carreira às custas do MST”, ataca. Na prática, tendo consciência disso ou não, Heloísa tenta incentivar os trabalhadores militantes que passam pela ENFF a seguir as pegadas de seu próprio pai.

O pai e sua obra

Filho de uma imigrante portuguesa que trabalhava como empregada doméstica, Florestan Fernandes teve uma infância bastante humilde, cercada de privações. Aos três anos perdeu a irmã, cega. Aos sete, já trabalhava como engraxate. Conheceu na pele as mazelas da classe da qual, posteriormente, se fez porta-voz. “A infância de meu pai é muito triste, cheia de perdas e privações”, resume a filha.

Em 1941, ingressou no curso de Ciência Sociais da USP. Em 1945, iniciou a carreira acadêmica como professor assistente de Sociologia. Nos anos 1950, teve participação destacada na Campanha em Defesa da Escola Pública, porque ele entendia a educação como direito fundamental de todos. Aposentado compulsoriamente pela Ditadura Militar, ministrou nas universidades de Columbia, Toronto e Yale. Retornou ao Brasil em 1978, passando a atuar na Pontíficie Universidade católica de São Paulo – PUC-SP.

Passou a maior parte da sua vida fora dos partidos políticos. Como dizia o professor, amigo e companheiro de militância Antônio Cândido, “Florestan, sozinho, valia por um partido inteiro”. Entretanto, participou do sonho de fundar o Partido dos Trabalhadores. E pelo PT, foi deputado federal por dois mandatos. Inclusive deputado constituinte, o que lhe rendeu uma grande decepção, quando descobriu que os defensores da escola privada ganhariam a batalha pelo modelo de educação adotado pelo país.

“A luta pela escola pública foi a mais precoce em Florestan e é coerente com sua interpretação da sociedade brasileira como uma sociedade que fez avançar o capitalismo às custas de refrear a construção de uma Nação, ou seja, às custas do tempo político e, portanto, da cidadania. Para ele, sempre esteve claro que, entre nós, a constituição de uma democracia da maioria, a construção de uma república, passa pela destruição da nefasta herança escravocrata que manteve a terra e a educação como privilégios de uma minoria. Seu projeto de Nação passava pela educação pública, de qualidade.Via educação pública, começaríamos a destruir o muro que separa o nosso país em duas nações, como ele costumava dizer”, explica a filha.

No final da vida, andava descrente dos rumos tomados pela legenda. “Nunca pensei que fosse encontrar no meu partido o medo da ralé”, dizia ele, conforme lembra a filha Heloísa. Ela recorda também que Florestan sempre desconfiou muito dos intelectuais, especialmente os brasileiros. “Ele sabia que muitos dos seus companheiros não eram marxistas autênticos, mas ‘importados’, que não entendiam as reais necessidades do nosso povo”.

Principal legado

A professora Heloísa Fernandes não se dá por vencida frente ao desafio de classificar qual foi a maior contribuição deixada por seu pai, reconhecido como importante e imprescindível professor, intelectual, cientista, político e militante. “Penso que o mérito maior de Florestan foi o de ter conseguido que os papéis confluíssem e se sobredeterminassem. Foi assim que ele conseguiu realizar seu grande projeto: o de ligar o ofício de sociólogo e a melhor investigação sociológica à construção de um pensamento socialista no Brasil”, afirma.

Ela acrescenta que Antonio Candido foi direto ao ponto quando disse que Florestan procurou "usar o rigor do conhecimento para intervir lucidamente nos graves problemas do nosso tempo. Nele, o sociólogo, o antropólogo construíram uma base sólida sobre a qual se ergueu a plataforma do revolucionário."

Por isso, Heloísa é incisiva ao afirmar que seu maior legado foi uma interpretação da sociedade brasileira que contribui decisivamente para um pensamento socialista no Brasil que não é dogmático, que não é importado, nem vazio, mas que está fincado nas raízes da nossa história e nas lutas do nosso povo. “Foi o sociólogo que ele era que impediu que ele se transformasse num marxista dogmático. Foi o pesquisador das relações raciais no Brasil e as descobertas que fez sobre a dominação autocrática que impediram que ele submergisse numa narrativa teleológica das classes sociais”, afirma ela.

E esclarece: “apesar do privilégio que sua análise concede à classe operária, mesmo assim sempre manteve o foco nos condenados da terra, os párias da terra, como ele dizia, os negros, os indígenas, os trabalhadores semi-livres, como ele insistia em chamar. Esse foco na massa imensa de brasileiros que está aquém ou para além da classe operária, é o foco do sociólogo”.

Educação emancipadora

Hélvio Mariano destaca que o modelo de ensino oferecido pela ENFF é muito diferenciado do adotado pela maioria das universidades, inclusive as que atuam em convênio com a escola. “Os objetivos são diferentes, a estrutura é diferente, e isso passa pela autonomia da ENFF de pensar seus próprios cursos e para quem serão destinados sem se preocupar com a chancela do Ministério da Educação.São cursos voltados para trabalhadores e centenas movimentos sociais da América Latina, do Caribe e, agora, de países africanos”.

Pela experiência que vivenciou na ENFF, o diretor do ANDES-SNa não tem dúvidas de sua importância para a formação de novos dirigentes para os Movimentos Sociais, não só do Brasil, mas da América Latina e África. “No momento, existem mais de cem haitianos estudando lá. Qual universidade brasileira já recebeu cem estudantes do Haiti? Nenhuma”, denuncia.

Ele, que visitou aquele país recentemente, afirma que uma das maiores reivindicações da comunidade acadêmica da Universidade do Haiti é que o Brasil receba estudantes e professores, pois depois do terremoto não há mais condições deles trabalharem ou estudarem lá. “Entretanto, até o momento, o que estamos assistindo é diversas universidades debatendo se recebem um, dois ou mais estudantes do país. Enquanto isso, a ENFF recebe cem estudantes haitianos de uma só vez, além de estudantes de diversos países da América Latina”. De acordo com Hélvio, essa interação cria um ambiente de troca de experiências que ajuda a criar laços para atividades conjuntas no futuro, não só no Brasil, mas em outros continentes.

Como apoiar a ENFF

No seu 55º CONAD, realizado em Fortaleza de 24 a 27/6, o ANDES- SN aprovou uma Moção de Apoio à ENFF. “Foi uma iniciativa muito positiva do Sindicato Nacional docente, uma homenagem não só a escola, mas também ao grande Florestan Fernandes. A escola é umas das mais belas experiências em gestação no Brasil dos últimos anos. Seria muito frustrante ver tudo aquilo acabar por falta de apoio dos sindicatos e dos trabalhadores”, afirma.

Segundo ele, uma das formas mais simples de manter viva a ENFF é se associar diretamente a Associação de Amigos da Escola Florestan Fernandes. Para obter mais informações sobre como participar e contribuir, procure a secretaria executiva Magali Godoi através dos telefones: (11) 3105-0918; 9572-0185; 6517-4780, do correio eletrônico: associacao@amigosenff.org.br ou da página eletrônica www.amigosenff.org.br.




Fonte: ANDES-SN

Com violência Engessul tenta grilar área da ACORDI

Os agricultores dos Areais da Ribanceira foram surpreendidos por tentativa de despejo ilegal às 7h desta quarta-feira. Funcionários da Engessul escoltados pela Polícia Militar derrubaram instalações de vigia montada por agricultores e avançaram com cercas dentro da área onde está instalado o engenho de farinha. Sendo que, fora os processos que denunciam a compra ilegal das terras ao redor da Associação Comunitária Rural de Imbituba (ACORDI), a área onde fica instalada a ACORDI tem escritura pública em nome da Codisc e portanto não pertence a Engessul. Mesmo assim a empresa tenta grilar a área.

A ação ilegal foi parada quando o advogado da Associação apresentou a escritura. Documento que deveria ser respeitado não só pela Engessul, mas também pelo oficial de justiça que tem pressa de passar todas as terras para a empresa.

Foi uma ação truculenta que causou inclusive uma crise de nervos na agricultora Carmen que foi levada para a emergência. A imprensa também sofreu represálias de capanga escoltado pela PM. Agricultores idosos foram intimidados e são obrigados a passar por baixo das cercas para chegarem às plantações.
Continua no sítio http://SULemMOVIMENTO.blogspot.com

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Governo avança no modelo de universidade subordinado ao Banco Mundial

Por Valéria Nader
Correio da Cidadania

Com exígua divulgação pela mídia, especialmente pelos grandes veículos, foi há alguns dias anunciado pelo governo o ‘Pacote de Autonomia Universitária’, através da MP 435/2010 e dos Decretos de nº. 7232, 7233 e 7234.

Esta é mais uma das medidas do governo Lula que, a partir de um olhar raso, pode levar às tão corriqueiras críticas dos setores mais conservadores, ressaltando uma suposta maior participação do Estado na economia, com conseqüente desperdício de recursos públicos. Conclusão a que estes setores chegariam com muita previsibilidade, uma vez incluídas em tal pacote medidas destinadas a contemplar parcialmente demandas estudantis e a, aparentemente, prover as universidades federais com maiores dotações orçamentárias.

Essas ilações não resistiriam, no entanto, a uma avaliação um pouco mais consistente, a qual faria emergir uma realidade oposta às conclusões restritas à abordagem fiscalista. Realidade ao mesmo tempo muito reveladora de um governo que, sob a aparência e a marca repisada da busca por justiça social, caminha muito sorrateiramente na consagração e aprofundamento do status quo, na imensa maioria de suas áreas de atuação.

E o que significa tal consagração e aprofundamento para o tema em questão, o chamado pacote de autonomia universitária? Ao contrário do que sugere o título do pacote, caminha-se no sentido oposto, em irrefutável rota de colisão relativamente à autonomia universitária. Institucionalizam-se as fundações privadas como lócus privilegiado para a gestão administrativa e financeira das universidades, através do famoso mecanismo das Parcerias Público Privadas, que nada mais são do que um artifício para a continuidade da privatização disfarçada do patrimônio público.

Roberto Leher, professor da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, nosso entrevistado especial, aprofunda a seguir sua visão sobre o novo pacote, associando-o à conjuntura econômica e política de um país que tem aprofundado sua inserção subordinada na economia mundial.

Correio da Cidadania: Como analisa o ‘pacote da autonomia universitária’ anunciado pelo governo através da MP 435/2010 e dos Decretos de nº. 7232, 7233 e 7234?

Roberto Leher: Como bem apontado pela pergunta, estamos diante de um pacote de medidas ditas sobre a autonomia universitária. Não me alinho às correntes da educação que sustentam que o melhor método de análise de um instrumento normativo é a sua leitura artigo a artigo, separando nos braços da balança o que pode ser bom e o que pode ser preocupante. Penso que esses instrumentos devem ser lidos a partir do conjunto de leis e de outros ordenamentos e que o trabalho do pesquisador é buscar as principais linhas de força desses instrumentos. Neste prisma, o pacote possui uma nervura central: a associação entre a autonomia, as fundações privadas ditas de apoio e os objetivos da Lei de Inovação Tecnológica.

Em síntese, o pacote é constituído pela Medida Provisória nº. 495, que dispõe sobre as compras governamentais e adapta a Lei nº. 8.958/94 sobre Fundações ditas de apoio às recomendações de um Acórdão do TCU sobre as ilegalidades das mencionadas Fundações; pelo Decreto nº. 7.232, que dispõe sobre a lotação de cargos de técnico-administrativos; pelo Decreto nº. 7.233, que dispõe sobre procedimentos orçamentários e financeiros relacionados à autonomia universitária; e pelo Decreto nº. 7.234, que dispõe sobre o Programa Nacional de Assistência Estudantil – PNAES. Este último instrumento, por contemplar parcialmente demandas defendidas pelas entidades estudantis, parece ser uma cereja no bolo do pacote para atenuar a mobilização estudantil.

Claro que, em função da abrangência dessas medidas, estudos mais sistemáticos são imprescindíveis, mas gostaria de tecer alguns comentários sobre a MP 435/10 – o instrumento que serve de matriz ao Decreto nº. 7.233 e, mais amplamente, à concepção de autonomia universitária do governo Lula da Silva, concepção fundamentalmente neoliberal, mas com temperos neodesenvolvimentistas. Pode parecer uma contradição falar em neodesenvolvimentismo referenciado pelo neoliberalismo. Mas penso que não.  O neoliberalismo é uma ideologia que permite o manejo político e econômico de um determinado padrão de acumulação que Harvey denominou como "acumulação por despossessão". Prefiro a conceituação de Florestan sobre o capitalismo dependente. O que importa aqui é o padrão de acumulação. Nesse sentido, digo que a autonomia é pensada nos marcos neoliberais, pois preconiza o estabelecimento de vínculos com o capital, pouco importando que o Estado seja um indutor dessa relação, visto que, como demonstrou Polanyi, não existe mercado sem Estado.

Correio da Cidadania: E quais são os pontos mais substanciais da MP 435 nesse sentido?

Roberto Leher: Vejamos alguns pontos nodais da MP 435. Em linhas gerais, ela trata dos acordos sobre compras governamentais, um dos itens mais sensíveis dos tratados de livre comércio. A medida admite que as compras governamentais estarão nos TLC, inicialmente com o MERCOSUL, mas explicita que é válida também nos futuros acordos comerciais (como o que está em curso entre a União Européia e o MERCOSUL, por exemplo). Neste caso, pode haver incentivos diferenciados do Estado aos parceiros comerciais do bloco. É possível prever que, no futuro, acordos com países europeus poderão resultar em inequívocos benefícios às corporações européias em matéria de C&T, ampliando a heteronomia cultural, científica e tecnológica do país. A partir desses balizamentos, a MP focaliza a relação entre as universidades, as fundações de apoio e a lei de inovação tecnológica.

A MP normatiza as parcerias público-privadas no âmbito das universidades, nos termos da Lei Inovação Tecnológica.  A MP institucionaliza as fundações privadas como loci da "gestão administrativa e financeira" dessas parcerias. Tendo em vista que há anos as universidades funcionam por programas e projetos, é possível aduzir que o alcance dessa MP é extraordinário: "entende-se por desenvolvimento institucional os programas, projetos, atividades e operações especiais, inclusive de natureza infra-estrutural, material e laboratorial, que levem à melhoria mensurável das condições das IFES (Instituições Federais de Ensino Superior) e das ICTs, para cumprimento eficiente e eficaz de sua missão, conforme descrita no plano de desenvolvimento institucional". Ou seja, todos os programas e projetos de pesquisa cabem aqui! A referida MP cumpre um papel indutor desse modelo de pesquisa subordinado às PPP, posto que, doravante, as Fundações de Apoio devem estar direcionadas para a mediação privada da chamada inovação tecnológica.

Com a MP, as fundações de apoio podem se tornar o centro de gravidade de toda política de pesquisa da universidade, desde que mediadas por contratos de PPP. Assim, pela MP, as fundações podem remunerar os professores e estudantes de pós-graduação e graduação engajados no empreendedorismo acadêmico por meio de bolsas de ensino, de pesquisa e de extensão e podem utilizar-se de bens e serviços das IFES e ICTs contratantes. A MP sustenta também que todo aparato de C&T (FINEP, CNPq e as Agências Financeiras Oficiais de Fomento) poderá realizar convênios e contratos diretamente com as fundações (ditas) de apoio.

O Decreto que se refere diretamente sobre a autonomia universitária (Dec. nº. 7.233) é complementar à MP. O Decreto permite que recursos não utilizados em um exercício possam ser aplicados no exercício subseqüente, desde que na mesma rubrica, uma antiga reivindicação da comunidade universitária, mas vai muito além disso. Com efeito, o Decreto busca normatizar o "reforço de dotações orçamentárias", em particular "o excesso de arrecadação de receitas próprias, de convênios e de doações do exercício corrente" e o "superávit financeiro de receitas próprias, de convênios e de doações". O Decreto pretende institucionalizar a busca de receitas próprias e, nesse sentido, deturpa o sentido da autonomia constitucional que determina a "autonomia de gestão financeira" e não a autonomia financeira das universidades. Ora, a busca de receitas próprias está inscrita na recomendação bancomundialista de que as universidades devem buscar mecanismos para o seu autofinanciamento crescente e é isso que o governo Lula da Silva está pretendendo com o pacote.

Ademais, o referido Decreto aperta o nó entre o financiamento e a avaliação produtivista, determinando que a avaliação de desempenho (SINAES/ CAPES) é uma das variáveis a ser considerada na definição do montante de recursos de cada uma das IFES.

Correio da Cidadania: Em sua opinião, que medidas deveria tomar um governo realmente comprometido com a autonomia universitária?

Roberto Leher: Creio que já explicitei que avalio o pacote como um conjunto de instrumentos nocivo à autonomia universitária. Um governo comprometido com a autonomia universitária deveria focar a ação governamental na remoção dos entulhos normativos que impedem o efetivo gozo da autonomia, tal como determinado pelo artigo 207 da Constituição, norma constitucional que é incompatível com regulamentações restritivas. Assim, as novas normas deveriam privilegiar a remoção dos mecanismos heterônomos, como a definição ad hoc do orçamento das IFES pelo governo. A autonomia requer a definição de mecanismos institucionais de financiamento que independam do governo de plantão e que permitam que as IFES possam desenvolver seus projetos institucionais.

Correio da Cidadania: Luiz Henrique Schuch, 1º. vice-presidente do ANDES (Associação Nacional de Docentes do Ensino Superior), apontou para a estranheza de se levar adiante o projeto através de MP, sem que houvesse urgência para tal. O artifício usado pelo governo revela que tipo de intenções políticas para o ensino superior?

Roberto Leher: A leitura da MP permite concluir que o governo pretende avançar no modelo bancomundialista da universidade como organização subordinada aos interesses do capital, não importa se nos marcos do mal denominado neodesenvolvimentismo. Nesse sentido, temos uma das maiores ameaças sobre a universidade na história recente das instituições. O dramático é que os reitores celebraram a heteronomia, pois acham que a mobilidade dos recursos de um exercício para o outro é uma grande vitória. O preço a pagar por esta pequena "conquista" será muito alto, mas quem pagará a conta serão os trabalhadores que necessitam de uma universidade autônoma para que possam produzir conhecimento novo imprescindível para superarmos os grandes problemas dos povos.

Correio da Cidadania: Parece, de todo modo, que, no geral, há uma orientação das IFES como entusiastas e cada vez mais defensoras da entrada de recursos privados em instituições públicas de ensino superior, não?

Roberto Leher: Como disse, aqui temos a questão mais axial do projeto de autonomia geminado com o fortalecimento das fundações ditas de apoio privado. O aprofundamento da condição capitalista dependente do bloco de poder requer a destruição das bases para um projeto nacional e popular. A prioridade do atual bloco de poder, bloco gerenciado pelo governo Lula da Silva, é disputar espaços na economia mundial a partir do aprofundamento do imperialismo. Isso significa mais dependência e uma maior interconexão com as corporações multinacionais.

Tudo isso se traduz na hipertrofia do capital portador de juros e do setor de exportação de commodities. Quando a universidade é colocada para servir a estas frações burguesas, temos uma profunda perda da função social da universidade. A universidade deixa de ter como função a produção do conhecimento para a solução dos problemas dos povos e deixa de ser uma instituição comprometida com a verdade e com o conhecimento objetivo e rigoroso da sociedade e da natureza. A instituição converte-se em uma organização operacional, voltada para objetivos particularistas dos financiadores.

O drama é que esses contratos nada têm a ver com a missão histórica da universidade. A lei de inovação tecnológica procura impor à universidade uma função que, no capitalismo, sequer é realizada no espaço universitário: a pesquisa e desenvolvimento (ou inovação). Nos países da OCDE, perto de 80% a 90% das inovações são realizadas dentro das empresas. Como as empresas localizadas no Brasil não possuem departamentos com estes fins, pois isso é feito em suas matrizes, o governo pretende subsidiar os custos da pesquisa e desenvolvimento deslocando essas atribuições para a universidade. Isso pode levar a uma completa descaracterização da universidade, com a destruição de sua autonomia frente ao governo e aos interesses do capital.

Concretamente, podemos vislumbrar uma situação em que o povo brasileiro deixaria de poder contar com suas universidades. Isso seria um retrocesso brutal na luta por um projeto civilizatório capaz de superar a barbárie que nos assola no cotidiano.

Correio da Cidadania: Estamos, portanto, diante do inexorável trunfo do mercado para impor seus ditames, apropriando-se de descobertas, inovações e demais adventos de relevância social com o resultado do trabalho de profissionais dessas instituições. Enfim, ao final, não se atenta exatamente contra a autonomia universitária?

Roberto Leher: Sim, o controle da produção do conhecimento pelo capital, por meio das patentes e das demais formas de propriedade intelectual, aumenta a heteronomia da universidade, tornando-a cada vez mais débil diante dos desafios no campo da saúde, da agricultura, da energia, da educação, das engenharias etc. Objetivamente, como pensar uma agricultura que fortaleça a soberania alimentar dos povos se toda pesquisa é auspiciada pela Monsanto? É obvio que as pesquisas da Monsanto estão a serviço de suas sementes transgênicas e de seus insumos agroquímicos associados a essas manipulações genéticas. O mesmo pode ser dito sobre as pesquisas da indústria petroleira no campo da energia ou das farmacêuticas no campo da saúde pública.

Correio da Cidadania: O ANDES já mostrou sua insatisfação e desaprovação com o plano. Houve um debate a contento da pauta da autonomia universitária, envolvendo todos os interessados, inclusive a sociedade? O governo deu algum ouvido a esses debates no período que antecedeu sua aprovação?

Roberto Leher: Não houve debate sobre o tema. A edição de uma MP comprova isso. O governo escutou essencialmente as corporações que precisam de plataformas de apoio em termos de Pesquisa e Desenvolvimento, mas que não estão dispostas a investir pesadamente nesse campo. Com isso, atendem também aos setores universitários engajados no capitalismo acadêmico.

É preciso revigorar o debate para que possamos fortalecer as resistências a essas medidas heterônomas. Para isso, o trabalho de argumentação com os segmentos acadêmicos genuinamente comprometidos com a ética na produção do conhecimento é prioritário. O protagonismo estudantil é igualmente crucial e imprescindível. Estou convencido de que o ANDES-SN estará profundamente empenhado nessa direção, pois o Sindicato possui um projeto de universidade laboriosamente construído em mais de 25 anos de luta, que a concebe como radicalmente pública.

A luta, contudo, tem de ser por um outro projeto de universidade e, por isso, o ANDES-SN deve seguir atualizando o seu projeto frente aos desafios impostos pela conjuntura.  Não creio em uma tática puramente reativa. O ANDES-SN e o movimento estudantil autônomo devem perseverar no trabalho político de ampliação do arco de forças em prol da educação pública, universal, gratuita, unitária e comprometida com a crítica à colonialidade do saber.

* Roberto Leher é doutor em Educação pela Universidade de São Paulo, professor da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), coordenador do Observatório Social da América Latina – Brasil/ Clacso e do Projeto Outro Brasil (Fundação Rosa Luxemburgo).

* Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania.

* Colaborou Gabriel Brito, jornalista, Correio da Cidadania.



Fonte: Correio da Cidadania
Data: 6/8/2010